Fragmentos de Viagem.

O projeto Fragmentos de Viagem engloba uma série de expedições a diversos países, desde 2003. Estas imagens são de 2008 e 2009, e tem como foco Portugal, Croácia, Índia e Havaí. Traçam diversos contextos culturais através de detalhes arquitetônicos, paisagens e vida local. Um estudo do ambiente local, com imagens fora do olhar puramente turístico. Um aprendizado de novas perspectivas de arte, contida em um cenário já explorado.

Crítica.

 

Fragmentos e Vislumbres

Viajar é vigiar. Quem viaja tem os sentidos exacerbados pelo deslocamento e o contato com o novo, tornando-se mais atento e vigilante – termo entendido aqui não no sentido de quem controla alguém e sim de quem está em pleno controle de si mesmo, concentrado e alerta. O estado de vigília do viajante é o oposto da sonolência, da inércia e do embotamento derivados da rotina e do tédio engendrado pela repetição diuturna das ações cotidianas.

Não é de se espantar, portanto, que as viagens tenham sempre inspirado escritores e artistas. O primeiro destino natural, para ambas as categorias, era a Itália, considerada com acerto um museu a céu aberto antes mesmo que os museus de arte se difundissem. Goethe e Stendhal escreveram célebres relatos de viagem à terra de Dante e Michelangelo, aumentando ainda mais o apelo do país. Foi inclusive no decurso de um roteiro italiano que o inventor inglês da fotografia, William Henry Fox Talbot – decepcionado com sua imperícia no uso da camera lucida – teve o estalo que o levou a conceber o processo que batizou de calotipia.

Por outro lado, na outra margem do Canal da Mancha, assim que foi notificada a invenção da daguerreotipia, em 1839, os fotógrafos se
apressaram em zarpar em todas as direções para compor o livro pioneiro Excursions daguerriennes. Em resumo, viagem e fotografia estão umbilicalmente ligadas desde o princípio, de forma tão intensa que se poderia afirmar que, para o homem moderno viajar é fotografar, ainda que o possa fazer sem câmara, acumulando impressões visuais que só serão repassadas nos slides shows da própria memória, no segredo da mente. Isto porque, sem o perceber, temos sido treinados a pensar em termos de imagem há mais de século e meio e, desde a virada do milênio, quando ocorreu a disseminação das câmaras embutidas nos celulares de baixo preço, somos condicionados a fotografar, como se o ato de registrar o que se vê fosse tão natural e
desejável quanto o próprio ato de ver.

Fotografar viagens é se inscrever na mais antiga das correntes fotográficas, de longevidade comparável somente com a prática do retrato, com a qual, às vezes, se mistura com ela numa fértil interação quando a viagem se torna pretexto para conhecer o outro ou, melhor ainda, para se reconhecer no outro. A rica tradição da fotografia de viagem pode desestimular alguns, ilusoriamente convencidos de que este já seria um terreno excessivamente explorado. Esse é um problema cujas raízes recuam ao século XIX, ao qual se soma um novo impasse hodierno e tecnológico: que novidades o mundo ainda pode nos reservar numa era em que os satélites nos permitem percorrer ruas dos quatro cantos do mundo, sem sair de casa? Ou, o que é mais desconcertante: nos possibilitam ver nossa casa de fora e de cima, sem sair de dentro dela.

De fato, caso não existisse o benefício subsidiário do acúmulo de milhas, de pouco valeria o incômodo de sair de casa apenas para fotografar, pois a visão do estrangeiro é – conforme já aponta Rodrigo Frota no título de sua exposição –fragmentária e, logo, parcial. Mas, por outro lado, existem dois outros fatores que justificam e estimulam a fotografia de viagem: a já citada percuciência de visão do forasteiro, capaz de ver com mais acuidade do que o local, “cego de tanto ver”; e o fato de que a boa fotografia de viagem não nasce simplesmente do tema e sim, da fricção resultante entre o tema (expressão de uma cultura específica e alheia à do observador), a própria cultura do
observador (em sua qualidade de representante de uma certa visão de mundo), e a personalidade do observador mesmo (sua individualidade enquanto ser humano distinto de todos os demais). É deste atrito que salta a chispa criativa, o insight, ou aquilo que era curiosa e saborosamente denominado aqui no Brasil de “o estalo do Viera”, o saque sagaz, personalizado e distintivo, que nos permite ver ou intuir aquilo que os outros que nos cercam não percebem ou não podem conceber.

No caso específico de Rodrigo Frota, esse confronto entre a própria personalidade e o mundo do outro que dá origem à fotografia de viagem parece revelar não só fragmentos de outros mundos, como também vislumbres de um outro Rodrigo Frota que talvez sejam prenúncios de um amadurecimento em curso. Isso porque, num fotógrafo bastante jovem, adepto do automobilismo e de esportes radicais, não encontramos o que se poderia esperar de uma personalidade presumivelmente irrequieta e antenada.

Coisas como a exaltação dos referidos esportes radicais ou das baladas hedonistas de Ibiza e de Mikonos, mas justo o contrário: imagens contemplativas e serenas de países ancestrais e recatados como Índia, Croácia e Portugal. E, mesmo no caso de um destino ao gosto jovem como o Havaí, o que há não é a esperada glorificação do surfe e
das grandes ondas e sim, da natureza e da paisagem habitadas por deuses antigos, acostumados a ver civilizações e culturas arrogantes explodirem no vazio, com o inútil estrépito de uma onda que se desfaz ante as rochas poderosas ou se vê obrigada a recuar ante a não-reação ativa da frágil areia das praias.

Tudo leva a crer que reside no íntimo de Rodrigo Frota um sadhu, como esse que ele retratou na Índia, que aflora quando ele parte em viagem e guia seu olhar para aquilo que é verdadeiramente importante, desde os mais ínfimos gestos milenares – como o de preparar a comida ou o de contemplar a natureza –, a possibilidade de convivência harmônica entre homens e animais e entre civilização e natureza, e a arquitetura entendida não apenas como uma proteção contra os rigores do tempo e
sim como a mais permanente expressão plástica de uma cultura, assim como um elemento de ligação entre o humano e o divino, bem como dos próprios seres humanos entre si. Passear por esses fragmentos de viagem de Rodrigo Frota ajuda a restabelecer nossa crença na condição humana e nos deixa com vontade de acompanhá-lo em futuras incursões de um atraente périplo visual que já se prenuncia sedutor, apesar de estar em sua fase inaugural.

Pedro Afonso Vasquez

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